É somente pela reflexão acerca de cada
aspecto em que Cristo nos é apresentado nas Escrituras, que somos capacitados a
compreender, em qualquer medida, o que Ele é por nós e para nós, bem como a
plenitude da verdade de nossa salvação. Já contemplamos Cristo como nosso
Salvador, e a alguns pode parecer como se este título incluísse também o que
Ele é como nosso Redentor; mas iremos descobrir, à medida que delineamos o
assunto, que somos guiados a contemplar novos aspectos, tanto de Sua obra como
de nossa condição.
Na verdade Ele consumou a redenção antes que pudesse apresentar-Se
como Salvador; pois Ele é capaz de salvar somente com base em Sua obra
consumada. Da parte de Deus, portanto, a redenção precede a salvação; mas
falamos aqui mais da ordem em que Cristo é compreendido na alma.
É deveras notável
que nem mesmo uma só vez no Novo Testamento - em meio a tantas palavras - é
dado a Ele este título de Redentor. Acerca dEle é dito que nos redimiu; e de
nós é falado que temos redenção nEle, por meio do Seu sangue, mas Ele nunca é
chamado de nosso Redentor. Por outro lado, no Antigo Testamento, este título
ocorre com frequência. (Jó 19:25; Sl 19:14 e 78:35; Is 41:14; 43:14; 44:6; 47:4
e 49:26, entre outras passagens.) Mas o fato de Cristo haver nos redimido,
sendo, portanto, nosso Redentor, é encontrado em cada livro do Novo Testamento;
e os anciãos no céu, ao observarem o Cordeiro tomando o livro dos conselhos de
Deus, cantam uma nova canção, dizendo, "Digno és de tomar o livro, e de
abrir os seus selos; porque foste morto, e com o Teu sangue compraste para Deus
homens de toda a tribo, e língua, e povo, e nação", e assim por diante (Ap
5:9). Portanto, em cada dispensação Deus tem sido um Redentor; e por esta razão
não há um outro assunto que seja mais digno de nossa meditação.
Nas Escrituras em hebraico há duas palavras
usadas com frequência para expressar a verdade da redenção. Uma significa "comprar de volta", ou
"redimir mediante o pagamento de um resgate"; e a outra,
"livrar". Esta é bastante usada com o mesmo significado da primeira,
embora seu significado original seja "livrar". No Novo Testamento há
apenas uma palavra grega, mas ela compreende os significados de ambas as
palavras hebraicas, a saber, livrar por se ter recebido um resgate. Há,
portanto, dois pensamentos na palavra "redenção": o pagamento de um
resgate, e a consequente libertação; ou o fato de se ter sido libertado, e a
condição em que somos colocados como resultado de termos sido redimidos.
Sendo
assim, antes de estarmos em condições de olhar para Cristo como nosso Redentor,
devemos considerar primeiramente o estado em que nos encontrávamos, o qual fez
com que fosse preciso que Ele viesse neste caráter. Não se trata apenas do fato
de que éramos pecadores. "Pelo que, por um homem entrou o pecado no mundo,
e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso
que todos pecaram" (Rm 5:12). Portanto, por intermédio do pecado a morte
reinou sobre o mundo todo. Mas, por pior que esta afirmação possa parecer,
havia algo mais. Por meio da queda - da queda do homem - Satanás havia
adquirido direitos sobre o homem, e detinha o poder da morte, manejando-a, na
verdade, como o justo juízo de Deus (Hb 2:14). Uma vez que todos pecaram,
Satanás tornou-se o príncipe deste mundo (Jo 12:31; 16:11); o deus deste mundo
(2 Co 4:4); mantendo a todos os homens cativos sob seu poder e cativeiro (At
26:18; Cl 1:13). Estávamos, portanto, em uma condição de irremediável
cativeiro, vendidos sob nosso pecado e sob o poder de Satanás, que reinava
sobre nós e afligia nossas almas com o severo rigor de sua escravidão. E nos
encontrávamos tão impotentes quanto desamparados, por havermos caído, por nosso
pecado, sob a pena de morte e, por conseguinte, sob o poder de Satanás. Sem
meios de prover um resgate, estaríamos encarcerados para sempre se não tivesse
havido uma intervenção para nos libertar do cárcere de nosso cativeiro. Por
isso o apóstolo Paulo diz: "Estando vós mortos em ofensas e pecados. Em
que noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das
potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da desobediência"
(Ef 2:1-2).
Tal
era a nossa condição. Falhamos em atender às reivindicações de Deus e,
consequentemente, caímos sob as penas devidas ao pecado; e acabamos ficando
também sob o domínio de Satanás, que reinava sobre nós por meio do poder da
morte, a qual ele manejava como o juízo de Deus sobre nós em razão de nossos
pecados. E foi então, quando não apenas estávamos destituídos de qualquer
direito diante de Deus, mas havíamos incorrido na justa pena que era devida aos
nossos pecados, que Ele, em conformidade com os conselhos da Sua graça, sendo
rico em misericórdia, em Seu amor e piedade, nos redimiu - nos redimiu não com
coisas corruptíveis como prata e ouro... mas com o precioso sangue de Cristo,
como um cordeiro sem mancha e sem mácula (1 Pd 1:18).
Iremos
considerar agora mais particularmente o modo como nossa redenção foi efetuada.
Constituiu-se basicamente de duas partes, o preço pago e a libertação efetuada
- as reivindicações de Deus satisfeitas e nossa libertação das mãos e do poder
de Satanás - e encontraremos estas duas coisas ilustradas historicamente na
redenção de Israel.
1.
O Preço Pago, ou O Dinheiro do Resgate. Quando falava aos Seus discípulos,
nosso bendito Senhor disse, "O Filho do Homem não veio para ser servido,
mas para servir, e para dar a Sua vida em resgate de muitos" (Mt 20:28).
Em outra passagem lemos que Cristo "Se deu a Si mesmo em preço de redenção
por todos, para servir de testemunho a seu tempo" (1 Tm 2:6). Isto é, Ele
Se entregou à morte - o que equivale dizer, conforme a outra passagem, que deu
a Sua vida. O significado destas afirmações serão explicados por uma passagem
do Antigo Testamento: "Porque a alma da carne está no sangue, pelo que
vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas:
porquanto é o sangue que fará expiação pela alma" (Lv 17:11). Portanto,
"sem derramamento de sangue não há remissão" (Hb 9:22). Sendo assim,
foi o sangue de Cristo (pois a vida está no sangue) que fez o papel do dinheiro
do nosso resgate: foi esse o preço pago pela nossa redenção. Por isso Paulo
diz, "em quem (Cristo) temos a redenção pelo Seu sangue" (Ef 1:7); e
Pedro, na passagem que já citamos, diz que somos redimidos pelo precioso sangue
de Cristo. Não é de se admirar que ele o denomine "precioso", uma vez
que valeu para atender a todas as reivindicações de um Deus santo que nos
pesavam, a fim de que, fundamentado nisto, Ele pudesse anunciar salvação para
todos. Pois, na verdade, o sangue não apenas satisfez as reivindicações de
Deus, mas Seu valor foi tão infinito que o Senhor Jesus, ao derramar Seu
próprio sangue, glorificou a Deus em tudo aquilo que Ele era - em cada atributo
de Seu caráter - e pode, assim, justificar justamente a cada um que crê em
Jesus. Sim, e mais ainda, Ele glorifica a Si mesmo ao trazer a Si cada crente e
ao fazer de cada um Seu filho e, se é filho, é então herdeiro, um herdeiro de
Deus e co-herdeiro com Cristo (Rm 8:17).
O
sangue de Cristo é, portanto, o dinheiro da redenção; e assim cada um que
encontra-se abrigado nele está a salvo do juízo para sempre. Isto foi
prefigurado no que aconteceu com Israel no Egito. Quando Deus estava para
castigar a terra do Egito, para passar por ela como um Juiz, e trouxe à tona a
questão do pecado, o Seu povo - Israel - estava tão sujeito ao golpe do
destruidor quanto os egípcios. Como, então, Israel poderia ser tão justamente
poupado quanto o Egito seria justamente julgado? Em uma de Suas mensagens a
Faraó, Deus diz: "Colocarei sinal de livramento (ou "redenção")
entre o meu povo e o teu povo" (Êx 8:23 - Nota da Versão Almeida
Corrigida). Isto foi feito de maneira notável quando, por instrução de Jeová,
"chamou pois Moisés a todos os anciãos de Israel, e disse-lhes: Escolhei e
tomai vós cordeiros para vossas famílias, e sacrificai a páscoa. Então tomai um
molho de hissopo, e molhai-o no sangue que estiver na bacia, e lançai na verga
da porta, e em ambas as ombreiras, do sangue que estiver na bacia; porém nenhum
de vós saia da porta da sua casa até à manhã. Porque o Senhor passará para
ferir aos egípcios, porém quando vir o sangue na verga da porta, e em ambas as
ombreiras, o Senhor passará aquela porta, e não deixará ao destruidor entrar em
vossas casas para vos ferir" (Êx 12:21-23). Foi assim que o Senhor redimiu
o Seu povo com sangue - figura do sangue do Cordeiro de Deus que tira o pecado
do mundo (Jo 1:29). Note, porém, que é feita uma importante distinção. O
mandamento foi dado a todos para que lançassem o sangue - a provisão era,
portanto, para todos; mas a menos que, em obediência de fé, o povo executasse
as instruções que receberam, não estariam protegidos. Agora também o sangue de
Cristo é suficiente para abrigar o mundo todo; mas se não houver fé, de nada
adiantará. "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho
unigênito, para que todo aquele (trata-se de algo individual) que nEle crê não
pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3:16). "Ao qual Deus propôs para
propiciação pela fé no Seu sangue" (Rm 3:25).
2.
Portanto, a primeira parte da redenção foi o pagamento do resgate; e isto, como
já vimos, foi feito pelo sangue de Cristo. Mas Israel não estava redimido -
embora estivessem perfeitamente a salvo sob o abrigo do sangue - enquanto ainda
se encontrasse no Egito. Foi então que a segunda parte, ou a conclusão de sua
redenção, aconteceu, quando Deus, com mão poderosa e braço estendido, tirou-os
da terra do Egito fazendo-os passar através do Mar Vermelho, e destruiu Faraó e
todo o seu exército sob as poderosas águas. Com base no sangue derramado, Deus
- tendo sido satisfeito como Juiz - podia agora agir em prol do Seu povo como
seu Libertador; e é assim que Ele os tira do Egito com poder. Aí puderam eles
cantar - coisa que não poderiam ter feito enquanto estavam no Egito - "O
Senhor é a minha força, e o meu cântico; Ele me foi por salvação... Tu, com a
Tua beneficência, guiaste a este povo, que salvaste: com a Tua força o levaste
à habitação da Tua santidade" (Êx 15:1-13). Eles eram então, e daí para a
frente, um povo redimido.
O
mesmo acontece com os crentes hoje: não podem dizer que estejam redimidos até
que saibam, não apenas que encontram-se abrigados pelo sangue, mas também que
estão tirados, limpos, do território do inimigo, tendo passado através da morte
e juízo, pela morte e ressurreição de Cristo. No caso de Israel, como se
tratava de um fato histórico, a aplicação do sangue e a passagem do Mar
Vermelho eram necessariamente duas etapas sucessivas. Mas agora a obra já foi
completada, na morte e ressurreição de Cristo, o que atende a ambas as etapas;
e apesar de ambas as coisas - o abrigo proporcionado pelo sangue e a libertação
- serem com frequência sucessivas em nossa compreensão, ainda assim não há
razão porquê a plenitude da redenção não possa ser recebida e desfrutada
concomitantemente. E ela seria de fato desfrutada com maior frequência, se um
evangelho mais completo fosse proclamado. Mas o mais comum é que este nunca vai
além do perdão dos pecados, razão pela qual as almas são mantidas na ignorância
da plenitude da salvação que Deus operou para elas em Cristo.
Mas
cabe muito bem explicar aqui, de forma mais completa, como é que a nossa
libertação é efetuada em Cristo. É, então, de primordial importância sabermos
que Deus não somente tratou da questão de nossos pecados - de nossa culpa - mas
que Ele também tratou com o pecado - nossa natureza má - na morte de Cristo.
"Deus, enviando o Seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado
condenou o pecado na carne" (Rm 8:3). Portanto Ele já julgou o pecado, a
raiz e o ramo; e foi assim que Cristo enfrentou e aniquilou completamente o
poder de Satanás (do mesmo modo como Deus aniquilou todo o poder do Egito no
Mar Vermelho - figura do poder de Satanás) em Sua morte. A consequência é que,
crendo em Cristo, sou levado, através da Sua morte, para fora da velha condição
na qual me encontrava (saindo do Egito), e por Sua ressurreição sou introduzido
em um novo lugar - um lugar (em Cristo Jesus) onde não apenas não há
condenação, mas onde também a lei do espírito de vida em Cristo Jesus me livrou
da lei do pecado e da morte (Rm 8:1-2). Consequentemente, Deus pode agora dizer
aos crentes: "Vós, porém, não estais na carne, mas no espírito, se é que o
Espírito de Deus habita em vós" (Rm 8:9). Nossa redenção é, assim,
completa; Deus agiu por nós - havendo todas as Suas reivindicações sido
atendidas e satisfeitas pelo sangue de Cristo - e havendo nós sido tirados de
nossa velha condição e levados para Si próprio. "Tu, com a Tua
beneficência, guiaste a este povo, que salvaste: com a Tua força o levaste à
habitação da Tua santidade" (Êx 15:13). Já passamos da morte para a vida,
havendo a morte e o juízo ficado para sempre para trás. Não estamos mais na
carne, vistos como filhos de Adão; mas uma vez que morremos com Cristo, todo
vínculo que nos ligava àquela condição está rompido, e estamos agora em Cristo,
e em Cristo onde Ele mesmo está, e somos, consequentemente, um povo redimido. Agora
sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam
a Deus, daqueles que são chamados por Seu decreto; e somos assegurados de que,
em conformidade com esse decreto, devemos ser conformados à imagem do Seu
Filho, para que Ele possa ser o Primogênito entre muitos irmãos; e, assegurados
de que aqueles que Ele predestinou, Ele também chamou; e aqueles que Ele
chamou, Ele também justificou; e aqueles que Ele justificou, também glorificou,
podemos adotar a linguagem triunfante do apóstolo e dizer: "Se Deus é por
nós, quem será contra nós?" (Rm 8:31). Sim, podemos descansar plenamente
persuadidos de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem
potestades, nem coisas do presente, nem coisas do porvir, nem altura, nem profundidade,
nem alguma outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo
Jesus (Rm 8:28-39).
3.
No entanto, há algo que precisa ser notado. Embora estejamos redimidos - e no
que diz respeito à nossa almas isto já está completo - temos que aguardar pela
consumação de nossa redenção quanto ao corpo. Havendo sido tirados do Egito e,
através do Mar Vermelho, completamente libertados, e tendo recebido o Espírito
Santo como o Penhor de nossa herança, aguardamos pela adoção - a redenção de
nosso corpo. Pois na verdade continuamos no deserto, e, por meio de nosso
corpo, ligados a uma criação que geme; e assim nós mesmos, que temos as
primícias do Espírito, até mesmo nós gememos em nós mesmos, aguardando o tempo
quando também nossos corpos serão redimidos (Rm 8:23).
Nosso vaso de barro se quebrará;
Enquanto envelhece este mundo
hostil;
Mas Cristo nosso precioso pó tomará
E o moldará novo, sem nada vil.
Os corpos arruinados transformará
Conforme aquilo que Ele mesmo é,
E então toda a criação se regozijará,
E
Ele porá fim ao seu gemido até.
Para
isso aguardamos a Sua volta para nos receber para Si (Fp 3:20-21); e então
veremos o quão gloriosamente completa é a redenção que Ele efetuou para o Seu
povo, tão completa que nada será deixado nas mãos do inimigo, mas espírito,
alma e corpo são resgatados e feitos propriedade Sua.
Portanto,
à medida que estudamos esta obra em toda a sua extensão, podemos
asseguradamente reconhecer, com corações gozosos, que Cristo é nosso Redentor.
E nunca deveria ser esquecido com que custo Ele nos redimiu para Deus. Estamos
acostumados a dizer - com Seu sangue. Mas quão pouco compreendemos o
significado das palavras; quão pouco entramos no maravilhoso fato de que Ele
entregou-Se a Si mesmo para morrer, desceu até colocar-Se sob toda a ira que a
nós era devida, foi feito pecado por nós, a fim de que pudéssemos ser feitos
justiça de Deus nEle. É certo que à medida que meditamos nisto, isto irá evocar
de nossos corações o mais constante clamor de adoração: "Àquele que nos
ama, e em Seu sangue nos lavou dos nossos pecados, e nos fez reis e sacerdotes
para Deus e Seu Pai: a Ele glória e poder para todo o sempre. Amém".* (Ap
1:5-6).
NOTA:
Não entramos aqui no aspecto mais amplo da redenção. Cristo também experimentou
a morte por todas as coisas (Hb 2:9); e deste modo tudo será colocado sob o Seu
poder (Ef 1:10; Hb 2:8). Nos é dito de forma bem clara que Ele comprou o campo
inteiro (Mt 13:44); e resgatou a todos os homens (2 Pd 2:1).
Quais
são então as nossas responsabilidades como povo redimido? A primeira e mais
importante é o reconhecimento de que pertencemos a Ele que nos redimiu. Esta
verdade é continuamente apresentada até mesmo nas Escrituras do Antigo
Testamento: "Mas agora, assim diz o Senhor que te criou, ó Jacó, e que te
formou, ó Israel: Não temas porque Eu te remi: chamei-te pelo teu nome, tu és
Meu" (Is 43:1). É por isso que o apóstolo, como podemos notar mais no
próximo capítulo, denomina-se com tanta frequência de escravo (na tradução
literal do grego) de Jesus Cristo. Pois uma vez que o Senhor Jesus já pagou, em
Sua maravilhosa graça e amor, o valor do nosso resgate, Ele adquiriu o pleno
direito e prerrogativa sobre tudo o que temos e somos. Somos daí em diante
propriedade Sua. Mas isto envolve um duplo aspecto - privilégio e
responsabilidade. Temos o privilégio de pertencer a Cristo, de sermos Seus, de
estarmos ligados a Ele por laços especiais (pois Ele amou a Igreja e
entregou-Se a Si mesmo por ela), e, portanto, de sermos alvos especiais de Seu
cuidado, ternura e amor. Agora dizemos: "O meu Amado é meu, e eu sou
dEle"; sim, e mais ainda, "Eu sou do meu Amado, e Ele me tem
afeição" (Ct 2:16; 7:10). E quão doce e bendito é pensarmos que Ele
adquiriu, por um direito que nada poderá jamais questionar, a propriedade de
nós mesmos! Que descanso dá à nossa alma recordarmos que pertencemos a Ele!
Seja na tristeza, na tribulação, ou na desolação - nas silenciosas vigílias da
noite - no isolamento de tudo o que nos diz respeito - que indizível solaz é
elevarmos nossos olhos para Ele, e sermos capazes de dizer: Tu nos redimiste, e
somos Teus - Teus para sempre!
Mas
que privilégio envolve a responsabilidade de mostrarmos praticamente, em nosso
andar e em nosso falar, que somos dEle - de vivermos não para nós mesmos, mas
para Ele que morreu por nós e ressuscitou (2 Co 5:15). Pois por meio de nossa
redenção estamos separados de todos os povos da Terra, e devemos, portanto, ser
distinguidos, pelo testemunho de nosso modo de ser, que pertencemos ao nosso
Redentor. Cabe a nós, a cada um de nós, nos colocarmos diante do Senhor e
perguntarmos a nós mesmos o quanto disto estamos fazendo. Perguntarmos se
estamos, como um povo redimido, separados daqueles que nos cercam, assim como
Israel estava separado, por exemplo, das tribos que os circundavam quando
passavam pelo deserto. É verdade que aquela era uma separação exterior; mas é
certo que era apresentada como um tipo e uma figura de uma separação mais real
do que a deles - mais real por causa do caráter mais profundo de nossa redenção.
Todavia a questão é: Estamos confessando diariamente, com o coração, com a vida
e com os lábios, que pertencemos a Cristo?
E
esta pergunta nos introduz em uma responsabilidade especial em conexão com
nossa redenção, conforme é declarado pelo apóstolo Paulo. Ele diz aos
coríntios: "Ou não sabeis que o nosso corpo é o templo do Espírito Santo,
que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque
fostes comprados por bom preço; glorificai pois a Deus no vosso corpo... os
quais pertencem a Deus"* (1 Co 6:19-20). Portanto, o Senhor exige o nosso
corpo pois nos comprou com preço; e desta forma gostaria de ter nossos corpos
como órgãos que expressassem, neste cenário, o que Ele é. É assim que, após a
completa declaração da redenção na epístola aos Romanos, o apóstolo diz:
"Rogo-vos pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos
corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto
racional" (Rm 12:1). Que honra é assim colocada sobre nós, que Ele pudesse
tomar este corpo, que foi outrora instrumento de Satanás, e fazer dele o meio
de exposição dEle próprio, a fim de que Deus possa ser glorificado! Ah, quão
pouco Satanás sabia do que estava fazendo quando instigou os judeus a
condenarem Cristo à morte! Satanás foi bem sucedido na sua tentativa de
expulsá-Lo deste cenário; mas qual foi a consequência? Há milhares de
seguidores de Cristo cuja única ocupação é refletir a Sua semelhança; é
carregar em seus corpos a mortificação de Jesus para que também a vida de Jesus
possa ser manifesta em seus corpos (2 Co 4:10). Quão longe estamos de,
individualmente, atender a este aspecto de nossa responsabilidade? Todos
deveríamos reconhecer isto, e se o reconhecemos, e temos que, ao mesmo tempo,
confessar nosso fracasso em corresponder a isto, podemos - e certamente
deveríamos poder - buscar nEle graça e forças para nos entregarmos
integralmente a Deus como vivos dentre os mortos, e a nossos membros como
instrumentos de justiça para Deus (Rm 6:13).
NOTA:
Não acrescento as palavras "e no vosso espírito" uma vez que não há
provas suficientes de que existam no original. O próprio argumento demonstra
que trata-se de um acréscimo não autorizado.
O
apóstolo Paulo também ensina que, por sermos redimidos, devemos repudiar e
rejeitar toda autoridade que entre em conflito com a autoridade que Cristo tem.
"Fostes comprados por bom preço; não vos façais servos dos homens" (1
Co 7:23). Desnecessário é dizer que isto não significa que não devamos ter
senhores neste mundo. Por outro lado Paulo deu, por meio do Espírito,
instruções especiais para aqueles que são colocados sob senhorio. Mas o que ele
declara aqui é a supremacia da autoridade de Cristo; e que nós, já que Ele nos
comprou com preço, pertencemos a Ele, qualquer que seja a nossa situação.
"Porque o que é chamado pelo Senhor, sendo servo, é liberto do Senhor; e
da mesma maneira também o que é chamado sendo livre, servo é de Cristo. Fostes
comprados por bom preço; não vos façais servos dos homens" (1 Co 7:22-23).
De modo semelhante, reforçando a mesma verdade, ele lembra os servos, em outra
epístola, que "a Cristo, o Senhor, servis" (Cl 3:24). Portanto,
qualquer que for nossa posição neste mundo, não importa o quão sujeitos
possamos estar, nunca devemos nos esquecer de que pertencemos a Cristo, que Ele
nos adquiriu com Seu próprio sangue; e por esta razão nosso olhar deve estar
sempre nEle, pois Ele é nosso Senhor, e é a Ele que servimos.
Outra
passagem irá indicar uma responsabilidade ainda mais ampla. "O qual Se deu
a Si mesmo por nós para nos remir de toda a iniquidade, e purificar para Si um
povo Seu especial, zeloso de boas obras" (Tt 2:14). Já vimos que o Senhor
nos adquiriu pela redenção, e este pensamento também encontra-se expresso nas
palavras, "purificar para Si um povo Seu especial"; mas há duas
coisas que são acrescentadas aqui, as quais Ele gostaria que caracterizassem o
povo que Ele redimiu. Seu objetivo era o de nos redimir de toda iniquidade,
tanto de seu poder (Rm 6:14) como de sua prática, e que fôssemos zelosos de
boas obras. Portanto, como redimidos, deveríamos ser reconhecidos por nossa
separação do mal, e separação para Cristo, e identificados como um povo
especial - um povo peculiar e adequado a Ele, e conhecidos por um zelo por boas
obras.
É
bom que nos julguemos por uma passagem assim, a fim de podermos detectar nossas
falhas e descobrir o quão longe estamos de atender à vontade de Cristo a nosso
respeito - ao Seu objetivo em nossa redenção. E que possamos principalmente
aplicar a frase "zeloso de boas obras". Pois enquanto não existe erro
maior no tempo presente do que uma atividade excessiva, na qual a alma perde,
com frequência, toda a comunhão e, por conseguinte, todo o poder, nunca deveria
haver um descuido para com as obras que estejam em conformidade com a vontade
de Deus. Deveras somos "feitura Sua, criados em Cristo Jesus para as boas
obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas" (Ef 2:10). Somos,
portanto, responsáveis em sermos zelosos de tais boas obras.
Se
nos voltarmos agora para 1 Pedro, encontraremos outro caráter de nossa
responsabilidade em conexão com nossa redenção. "E se invocais por Pai
Aquele que sem acepção de pessoas, julga segundo a obra de cada um, andai em
temor, durante o tempo da vossa peregrinação: sabendo que não foi com coisas
corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira de
viver que por tradição recebestes dos vossos pais, mas com o precioso sangue de
Cristo, como de um Cordeiro imaculado e incontaminado" (1 Pd 1:17-18).
Pedro nos coloca assim na presença de Deus Pai, e nos coloca ali como
peregrinos, para que passemos o tempo de nossa jornada em temor, naquele santo
temor que é devido à Sua santidade, em conformidade com a qual nossas obras são
julgadas ainda agora. Ele gostaria de nos ter como peregrinos que foram tirados
do Egito, em nossa passagem através do deserto, para guardarmos a santidade,
para sermos santos, porque Deus é santo (v. 16). Pois é para Deus que somos
redimidos; e por isso Ele quer que sejamos, em nosso andar e maneira de ser,
adequados a Ele - ao Seu próprio caráter. Quão vigilantes devemos então ser
para nos mantermos separados do mal, para andarmos de modo digno da vocação com
que somos chamados, tendo o temor de Deus diante de nossos olhos, sabendo que
Ele toma nota de todas as nossas maneiras, e que sem santidade ninguém verá a
Deus (Hb 12:14).
Finalmente,
nos é ordenado que olhemos para diante, para o dia da redenção. Assim nos é
dito que o Espírito que em nós habita "é o penhor da nossa herança, para
redenção da possessão de Deus, para louvor da Sua glória" (Ef 1:14); e
ainda, que não devemos entristecer "o Espírito Santo de Deus, no Qual
estais selados para o dia da redenção" (Ef 4:30). Será então que todos os
frutos da redenção serão alcançados e desfrutados, quando o Senhor tomar posse,
em poder, de tudo o que já foi adquirido pelo Seu precioso sangue. Já nos
ocupamos disto no que diz respeito ao corpo. Mas há mais do que isso. Temos o
Espírito como Penhor de nosso futuro pleno de participação na herança que
pertence a Cristo - uma herança sobre a qual Ele tem direito pela redenção,
quando adquiriu todas as coisas para Si mesmo, mas das quais Ele só tomará
posse por Seu poder quando tiver reunido todos os co-herdeiros para que
desfrutem delas Consigo. É por isto que esperamos - não apenas pela vinda de
Cristo, pela ressurreição de nossos corpos, e por sermos glorificados
juntamente com Ele, mas também pelo tempo quando, como co-herdeiros com Ele,
entraremos, com Ele, na posse de toda aquela cena de domínio, bênção e glória,
que Ele adquiriu por Sua morte - Sua obra de redenção - sendo tudo a aquisição
de Seu próprio sangue precioso. Que maravilha é que nos seja dito que essa
consumação é para o louvor da glória da Sua graça; o nosso compartilhar com
Cristo em Sua herança será para louvor da Sua glória. É numa cena assim de
bênção e exaltação que, pela graça de nosso Deus, entraremos muito em breve.
Pois já que somos filhos, somos herdeiros, herdeiros de Deus, e co-herdeiros
com Cristo; e Ele está aguardando pelo momento em que poderá cumprir o desejo
de Seu próprio coração de ter-nos Consigo mesmo, em conformidade com Sua
própria oração: "Pai, aqueles que Me deste quero que, onde Eu estiver,
também eles estejam Comigo, para que vejam a Minha glória que Me deste: porque
Tu Me hás amado antes da criação do mundo" (Jo 17:24). Possa Ele
capacitar-nos a andar agora como aqueles que esperam pela consumação de uma
bênção tal!
Edward Dennett - "Christ
Our Redeemer" - Unsearchable Riches, Pág. 21
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